É comum observar a formação de sociedades ou a criação de holdings como instrumento para a transmissão de patrimônio entre os sócios, muitas vezes com significativa discrepância na distribuição de cotas. Esse mecanismo tem sido amplamente utilizado como forma de planejamento patrimonial e sucessório, permitindo que bens sejam repassados entre familiares sem a incidência de tributos elevados. No entanto, a prática tem gerado debates sobre a tributação incidente sobre esses atos, especialmente no que se refere ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
O Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, atualmente aguardando apreciação pelo Senado Federal (atualizaremos assim que houverem novas movimentações), tem sido alvo de intensas discussões por regulamentar aspectos da reforma tributária e estabelecer novas diretrizes para o ITCMD. Em especial, o texto aborda a tributação sobre distribuições desproporcionais de lucros que sejam fundamentadas em liberalidade, ou seja, que não tenham uma justificativa negocial válida e sirvam apenas para transferir patrimônio sem a devida incidência do tributo.
PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E O USO DE HOLDINGS
Nos últimos anos, a constituição de holdings tornou-se uma estratégia recorrente para facilitar a sucessão patrimonial e reduzir a carga tributária sobre heranças e doações. Empresas frequentemente estruturam modelos societários nos quais a participação nos lucros não corresponde estritamente à proporção das cotas detidas pelos sócios. Esse modelo permite, por exemplo, que um sócio com participação ínfima receba uma parcela majoritária dos lucros, enquanto outro, com participação expressiva no capital social, receba valores menores.
Embora a legislação societária permita distribuições desproporcionais de lucros em determinadas situações, a Receita Estadual e os Tribunais têm se posicionado contra essas operações quando utilizadas exclusivamente para reduzir a tributação incidente sobre doações. Assim, o PLP 108/2024 busca consolidar o entendimento de que essas transferências, quando realizadas por mera liberalidade, devem ser tributadas pelo ITCMD.
A LINHA TÊNUE ENTRE DISTRIBUIÇÃO LEGÍTIMA E DOAÇÃO DISFARÇADA
O Código Civil prevê que os sócios podem estabelecer critérios específicos para a distribuição dos lucros, conforme os artigos 997 e 1007, desde que haja uma justificativa negocial. Na prática empresarial, é comum que sócios tenham participações diferenciadas nos lucros por conta de fatores como aportes de capital, expertise ou contribuição efetiva ao negócio.
No entanto, o problema surge quando essas regras são utilizadas para encobrir doações. Em um exemplo clássico, um empresário pode incluir seu filho como sócio de uma holding com apenas 0,001% do capital social, mas garantir a ele 100% da distribuição dos lucros, efetivando, na prática, uma doação disfarçada sem o pagamento do ITCMD. O PLP 108/2024 reforça que essa prática configura fato gerador do tributo, independentemente da nomenclatura dada ao ato.
O artigo 112 do Código Civil estabelece que a intenção prevalece sobre a forma do ato, ou seja, o simples fato de um contrato social prever uma distribuição desigual de lucros não impede que a transação seja interpretada como uma doação tributável. Além disso, o Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 118, determina que o fato gerador do tributo deve ser analisado independentemente da validade jurídica dos atos praticados pelo contribuinte, impedindo que uma estrutura formalmente legal seja utilizada para evitar a tributação de uma doação.
JURISPRUDÊNCIA E IMPACTO DO PLP 108/2024
O entendimento de que distribuições desproporcionais de lucros podem configurar fato gerador do ITCMD já é reconhecido pela jurisprudência. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), considerou que valores repassados a sócios sem uma justificativa negocial válida devem ser tributados pelo ITCMD.
O PLP 108/2024 não cria uma nova hipótese de tributação, mas consolida esses entendimentos, reforçando a segurança jurídica para a fiscalização e para os contribuintes. O texto não impede a distribuição desproporcional de lucros, desde que ela seja fundamentada em razões negociais legítimas.
Além disso, um ponto polêmico do projeto é a previsão de redução da alíquota para esse fato gerador específico, o que pode ser considerado inconstitucional. Como normas gerais em matéria tributária, as regras do PLP 108/2024 não poderiam dispor sobre alíquotas, que são de competência dos estados e do Distrito Federal. Além disso, a Emenda Constitucional 132/2023 determinou que o ITCMD deve observar o princípio da progressividade, o que pode ser violado pela fixação de uma alíquota reduzida para um tipo específico de fato gerador.
CONCLUSÃO
O PLP 108/2024 representa um avanço na regulamentação da tributação sobre transmissões patrimoniais disfarçadas, especialmente no contexto de holdings familiares. Ele não impede a distribuição desproporcional de lucros, mas reforça que, quando essa distribuição ocorre por liberalidade, sem uma justificativa negocial, ela deve ser tributada pelo ITCMD.
Empresas, tributaristas e planejadores patrimoniais devem estar atentos às novas regras para evitar autuações fiscais e garantir que suas estratégias estejam em conformidade com a legislação vigente. O projeto ainda depende de apreciação pelo Senado Federal, mas já se mostra como um marco importante na fiscalização do planejamento sucessório no Brasil.